quando a gente se perde
- Ana Luísa Vahl Dias
- 23 de abr.
- 5 min de leitura
quando a gente se perde, a vida para de fazer sentido, efetivamente.
literalmente.

esse texto não precisa de formatação porque, quando a gente se perde, nada tem forma definida. tudo não passa de uma simbiose de cores, texturas, sons, cheiros e gostos, misturados, conectados, separados e lançados à entalpia do universo.
o mundo moderno tomou uma proporção grande demais. a modernidade distrai, sufoca, bloqueia, inunda. e, apesar de a modernidade nos ter dado liberdade, ela também nos deu responsabilidades que não solicitamos. estruturas, expectativas, sonhos, e tantas outras coisas que, sem clareza de si mesmo - sem conexão com quem se é - facilmente nos afogam.
está dado o paradoxo guia dessa reflexão.
como ter conexão com quem se é e clareza de si mesmo com o mundo moderno sufocando e roubando toda e qualquer atenção pré-existente?
não há tempo, nem foco, nem prioridade. não dá pra parar pra descobrir quem se é, é preciso trabalhar, consumir, caminhar, evoluir - seja lá o que tudo isso for.
ao focar em se tornar eficiente e conquistar tudo o que o mundo moderno promete como felicidade, não há percepção do quanto o ser se perde no processo.
encontrar o amor para a vida é um dos objetivos de vida. mais que isso: é sorte ter ao lado alguém que caminha com você. mas, quando a gente se perde, a gente perde, no meio da bagunça, o que fez esse amor chegar e ficar. você não perde a consciência de que aquele é o seu amor, mas perde a capacidade de encontrar, no meio da simbiose do mundo, o porquê viver isso é bom. você não deixa de amar e é exatamente por amar que a consciência de estar perdido te faz acreditar que aquela pessoa merece alguém que goze a vida, e não alguém que não sabe mais como é ver prazer no viver.
quando a gente se perde, todos os sentimentos se misturam e sufocam sob uma névoa densa de confusão. você acorda, mas não sabe ao certo por quê. você ama, mas não se sente capaz de externalizar e movimentar a partir disso. você sofre, mas até o seu sofrer não parece lógico. você procura sonhos para se agarrar, mas todos eles parecem vãos, sem sentido, e escorrem pelas suas mãos.
quando a gente se perde, as formas de vida parecem sem sentido: são apenas um aglomerado de caos flutuando pelo universo. quando a gente se perde, o mundo se torna óbvio, uma sequência de zeros e uns. um movimento lógico e exaustivo, como uma fábrica de tempos modernos onde você aperta parafusos sem saber se está construindo um carro ou uma arma.
esse é o verdadeiro problema.
mesmo que tenhamos trabalhado para criar um mundo moderno que nos dá liberdade de ser o que se é, também criamos um mecanismo que nos transforma em meros atores coadjuvantes de uma sociedade em colapso.
quando a gente se perde as coisas se mecanizam e a esperança se desfaz, porque a esperança não tem forma, é orgânica, e, quando a gente se perde, é porque já foi engolido pela realidade material, dura, óbvia. foram tantas horas, dias, anos dedicados em se adaptar e se esforçar ao máximo, ser valorizado, ser reconhecido, ser pago que, quando isso acontece, você já se perdeu.
fazer faculdade, encontrar um estágio, encontrar um relacionamento estável, conquistar um bom emprego, ser promovido, ganhar mais, ter uma casa, pagar a luz, morar em um bairro mais seguro, fazer uma pós, ser contratado por uma empresa internacional, aprender outra língua, comprar um carro e, quando tudo isso estiver feito, eu serei feliz e, aí sim, eu vou ter ânimo para viver.
mas viver o que? nada faz sentido. nessa correria para conquistar as ditas “etapas da vida moderna”, o eu se perdeu e não há mais indícios de como ou o quê é viver.
onde você ficou no meio disso tudo?.
não ouve mais seus pensamentos. não vê mais o tempo passar. não sente prazer em comer. não gosta de se mexer. conversar com as pessoas nunca foi tão difícil.
silêncio.
o choro acontece, a angústia de não se encontrar mais dentro de si. um momento de melancolia: aceito que não há sentido.
um novo paradoxo.
será que eu não sei quem sou porque eu me perdi ou, no meio do caos, eu mudei? eu ainda gosto das mesmas coisas? eu ainda tenho os mesmos sonhos? eu ainda quero ser o que queria ser? não sei.
pânico.
não posso voltar a ser o que eu era. eu nem sei ao certo se eu era alguma coisa palpável e etérea ou se estava apenas gastando a energia da juventude perseguindo coisas que me disseram que deveria perseguir. não importa mais.
liberdade.
eu posso descobrir uma nova versão de mim, começar de novo, como uma criança empolgada com uma nova descoberta.
esperança.
não é preciso deixar as pessoas que se ama pelo caminho, mas é direito delas ficar ou não. não é preciso gostar das mesmas músicas de antes, mas talvez sejam elas que terão o poder de trazer à superfície boa parte do que você é em essência. não é preciso se agarrar a uma crença ou fé no sobrenatural, mas você pode se isso for te dar mais estrutura psicológica para aceitar a inconsistência do ser.
a grande verdade é que, quando a gente se perde, a vida para de fazer sentido. as coisas ruins ficam mais ruins e parece que “o mundo não tem mais jeito”. mas esse é um sintoma. a doença não está no mundo, está na sua auto-percepção. você está perdido e acredita que não tem mais jeito de se encontrar. por que então haveria jeito de ser feliz no mundo?
a grande dificuldade é vencer a sua mente querendo te desencorajar de se procurar porque, se você se procurar, vai encontrar algo e, quando encontrar algo, repetirá todo o processo de novo, e ficará doente de novo, e vai doer, muito, de novo. é auto-proteção. é a tentativa de preservação do que resta de você.
mas, depois de um incêndio, a melhor forma de reconstruir um prédio é desmanchar e começar tudo de novo.
não deixe que sua mente decida por você. ela é só um órgão responsável por preservar sua existência e nem sempre ela toma boas decisões.
e não tem receita, a ordem e a velocidade são única e exclusivamente suas. é preciso coragem, força e resiliência. mudar tudo se preciso for.
durante esse processo sem fim, você vai resgatar coisas intrínsecas a você e também conhecer partes suas que não tinha visto ainda. talvez mude de personalidade, de namorada, de estilo, de credo. mas a graça é essa. a vida é cíclica e, assim como as borboletas, nós também passamos por um processo de metamorfose durante a jornada.
lembre-se: o material é parte da vida, mas não pode ser a vida.
e, por fim, uma última reflexão:
se você fosse comunicado que a vida é, na verdade, uma experiência sem objetivos, sem obrigações, apenas um presente do universo para você gozar do que há disponível pra você, aqui, as suas escolhas seriam as mesmas?
você seria o mesmo?
quando a gente se perde, a vida para de fazer sentido, efetivamente.
literalmente.
mas, é quando não existem mais expectativas ou pré-definições que a gente pode dar diversas variações para o mesmo tema, quantos sentidos forem possíveis.
e como diz castello branco: I’m back to myself, me deixa.
só quando a gente se perde é que a gente tem a chance de se encontrar de novo.
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